Jossineide Oliveira e Silva, 39 anos, educadora, consultora e empreendedora, é uma das mulheres pioneiras na área de refrigeração no Brasil, uma área em que ainda predomina a mão de obra masculina. Ela é também a primeira instrutora mulher, atuante na área de refrigeração e climatização no Brasil, que participa como instrutora, em Porto Velho, Rondônia, do curso “Boas Práticas em Sistemas de Ar Condicionado do Tipo Janela e Mini-Split”, realizado no âmbito da Etapa 2 do Programa Brasileiro de Eliminação dos HCFCs (PBH), sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente e implementado pela Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável por meio da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ).
Na entrevista abaixo, Jossineide, casada e com três filhos, fala da importância desse curso e também dos desafios que ultrapassou para chegar a uma carreira de sucesso ao comemorar 25 anos na Refrigeração e Climatização.
Como foi a experiência de participar do “Treinamento dos Treinadores” em Manaus?
Nós, como professores, com nossa experiência no Norte, temos muito que alinhar em termos de conhecimento com o Sul e Sudeste do País, especialmente em nível tecnológico. Nessa hora do treinamento, o professor chega e calça a sandália da humildade ao se tornar de novo aluno. Nosso desafio é aprender sempre e assim poder auxiliar ainda mais o aprendizado dos nossos alunos para que eles estejam no mesmo nível do restante do Brasil. O PBH, por meio do MMA e da GIZ, nos proporcionou, além desse treinamento que agregou muitos conhecimentos, equipamentos mais modernos que nos ajudarão muito nesta tarefa. Pode ser simples ou pouco para outras escolas, mas para a nossa, essa parceria trouxe muita inovação.
Além de professora, você é empreendedora. Como você vê a aplicação do conhecimento desse curso na prática?
Durante o dia, tenho coparticipação em uma empresa de refrigeração (sócia). À noite e em algumas tardes, trabalho como professora no Senai de Porto Velho. Também consigo trabalhar pontualmente as necessidades de empresas, como consultora para curso (in company). Esse curso me ajudou como professora e dona de empresa. Pensando como empresa, esse curso de Boas Práticas nos proporciona boas oportunidades. Não digo que nos trará um aumento de receitas, mas uma economia considerável nos processos e nos serviços. A questão da consciência ambiental proporciona economia nos processos, por nos mostrar a importância de reaproveitar o fluido. Vou trabalhar com meus colaboradores para que realizem melhoras nos serviços para não terem de retornar aos clientes (para retrabalho). Gastar dois minutos a mais na brasagem, por exemplo, é reduzir o número de retorno nos serviços. Assim economizamos recursos, atendemos melhor e cuidamos do meio ambiente.
Hoje, na minha empresa, eu já recolho os fluidos e reaplico os mesmos, porque trabalhamos com sistema de refrigeração industrial, que utilizam grandes volumes. Mas, mesmo realizando o reaproveitamento, antes nós não tínhamos alguns cuidados que aprendemos agora com esse novo curso, como, por exemplo, usar o filtro antes do gás chegar no cilindro. São cuidados muito importantes, que agora iremos praticar.
Agora, também, com a aquisição do kit de reciclagem, nossa proposta é tratar do fluido que retiramos de sistemas menores. Aqui, na nossa região, ainda não temos uma empresa especializada em reciclar o fluido refrigerante. Com esse kit vamos conseguir reciclar um volume pequeno, mas já é um começo.
Como é o mercado de refrigeração e climatização em Rondônia, especialmente em relação à adoção das boas práticas ambientais como propostas nesse curso?
Todas as vezes que a gente fala da necessidade de proteção do meio ambiente, os executivos das empresas geralmente não demonstram consciência ambiental. Mas quando falamos de uma vantagem financeira, de um ganho financeiro, de maior eficiência energética, eles mudam. Infelizmente, é assim. Nosso mercado aqui em Rondônia é muito promissor. Não só a parte de refrigeração tem uma grande demanda, mas também a parte de conforto térmico, de climatização. É muito importante o conforto térmico aqui, por causa das grandes temperaturas e da alta umidade. Aqui, ou chove ou faz sol. Eu nasci aqui em Rondônia, mas 70% da população daqui veio de fora. Então, as pessoas conhecem o conforto térmico e por isso procuram comprar sistemas de ar condicionado.
Como esse mercado é muito promissor, tem muito técnicos trabalhando, mas falta educação profissional. Esse curso é uma oportunidade para os técnicos obterem essa educação. Com esse curso do PBH, esse técnico, que aprendeu fazendo e que ainda é recente de formação, tem muito a aprender e, assim, ele poderá trabalhar de maneira correta e economicamente viável. A nossa primeira turma começa em outubro. Temos expectativa de formar 350 alunos até outubro de 2019 e acredito que vamos conseguir ultrapassar essa meta.
Como você iniciou nessa área?
Aqui em Rondônia, quando terminei meu curso de aprendizagem, era natural em seguida cursar uma escola profissionalizante. Na época, era normal mandar os filhos para essas escolas, para eles se inserirem no mercado de trabalho rapidamente. Quando fui procurar me inscrever, não tinha mais vaga no curso de corte e costura, tradicionalmente indicado para mulheres. Então, eu escolhi o curso de Mecânica em RAC. Com 14 anos, eu entrei. Na época não tinha um critério ser homem ou mulher para poder se inscrever. Hoje eu penso que ainda bem que não teve objeção da minha matrícula (risos). Mas, quando cheguei, eu era a única mulher. Foi difícil. A forma de ensinar muito lógica, com poucos diálogos, poucas explicações de processos. As piadas machistas, que todos riam, sem dar conta da minha presença. A falta de confiança dos professores e dos colegas…
Como você ultrapassou esse grande desafio?
Eu tive que me empenhar muito para realizar esse curso, e, para tanto, eu resolvi estudar em dobro, dentro e fora do horário de aula. Assim, eu procurei trabalho em empresas, em caráter voluntário (estágio não remunerado) para poder praticar os serviços de mecânica em RAC.
Tanto me esforcei, que o meu professor à época me escolheu para participar do Torneio de Formação Profissional no ano 1996, em Brasília, uma competição nacional, de alto nível tecnológico e emocional, entre técnicos de Refrigeração e Climatização de todas as escolas técnicas do país (muito prestigiada até hoje). Era um grande desafio, mas enfrentei! Eu competi com alunos (homens) de grandes metrópoles do Brasil, conquistando o 3º lugar no Pódio, à frente de escolas de São Paulo, o estado mais desenvolvido do País, e de outros estados. Hoje, essa competição tem o nome de “Olímpiada do Conhecimento”.
Fiquei muito grata e feliz pelo resultado, pois minha formação profissional tinha se dado em meio à Amazônia, no estado de Rondônia, onde a tecnologia costuma chegar em tempo defasado em relação às cidades do Sul e Sudeste do país.
A partir dessa conquista, você já começou a atuar como instrutora?
Depois da competição, fui contratada pelo Senai como artífice, um assistente do instrutor. Mas na época, eu tinha de assumir as aulas, quando o professor viajava. Eu fazia o trabalho dele e eles não me reconheciam como professora. Ainda não tinha nem 18 anos. Foi quando um professor me aconselhou a fazer um curso técnico em Refrigeração e Climatização, que eu realizei em Minas Gerais. Quando concluí, voltei para cá e fui contratada como instrutora, só que com um terço do valor dos outros instrutores homens. Como eu reclamava das injustiças, fui mandada embora. Foi por isso que resolvi cursar a faculdade de Serviço Social, para buscar entender essas injustiças. Eu tinha vontade de fazer engenharia mecânica, mas estava tão indignada com a situação, que achei melhor entender as injustiças. Eu penso que toda pessoa tem condição de ter acesso ao mercado de trabalho, desde que tenha uma oportunidade de superar a sua limitação.
Nessa mesma época você já começou a trabalhar com sistemas industriais, certo?
Sim. Logo que saí do Senai, em 2011, fui convidada para atuar na área de assistência técnica de uma renomada empresa de RAC na minha cidade, a Polo Frio Comércio e Serviço. Era um serviço duro, mas eu fui. Lá eu mostrei que eu conseguia fazer. Fui logo promovida e tive a incumbência de padronizar e gerenciar todos os serviços prestados pela empresa, para que todos os serviços fossem de qualidade e eficiência, liderando uma equipe de 20 pessoas. Nesta empresa, atuei por quatro anos, que me trouxeram muitas experiências positivas para minha vida profissional.
A partir daí, decidi trabalhar com sistemas de climatização industrial, que exigem mais dedicação e conhecimento. Comecei a ser convidada para consultorias por várias empresas que buscavam oferecer serviços de qualidade a seus clientes, em todo Brasil, realizando inclusive treinamentos “in company” das suas equipes técnicas. Paralelamente, firmei parceria com um colega de profissão, o João Fecchio, pela qual compatibilizamos alguns sonhos e projetos para trabalhar com sistemas de climatização industrial VRF e Chiller. Assim, me tornei empresária, sócia da Vento Sul Soluções Térmicas Ltda. Hoje, 50% dos sistemas VRF instalados no estado de Rondônia são realizados por nossa empresa.
Como foi sua volta ao sistema Senai?
Foi muito boa. Em 2016, ainda atuando com minha empresa, voltei também a trabalhar no sistema SENAI, onde reestruturei os cursos de Mecânica RAC dentro da instituição no estado de Rondônia, a partir de uma pesquisa de mercado que mostrava evidências de que o setor precisa de profissionais RAC educados e qualificados no estado (esses cursos tinham sido suspensos por cinco anos). Também articulei a participação do SENAI Porto Velho no Edital do PBH/GIZ para o curso de Boas Práticas em Sistemas de Ar Condicionado do Tipo Janela e Mini-Split, que agora vamos ministrar.
Mesmo com esse sucesso, você ainda enfrenta o preconceito por ser mulher em uma área em que predominam trabalhadores homens?
Até hoje eu sinto o preconceito. Quando vou dar um curso, os alunos ainda me julgam (será que ela sabe mesmo?). Eles sentem insegurança. Isto acontece até o segundo ou terceiro dia; daí, eles já começam a agir como alunos normais e mudam de comportamento. É um obstáculo a ser vencido, sempre. Com a minha história, espero encorajar a qualquer pessoa que tenha interesse nesta profissão a vencer limitações, sejam elas geográficas, intelectuais, físicas, de raça, de nível social, entre outros. Muitas foram as vezes que pensei em desistir… e cuidar apenas da minha família, como aprendi que “era minha obrigação” na cultura de família tradicional em que cresci.
Quando olho para o início de tudo, 25 anos atrás, vejo como foi importante ter insistido. Como foi bom ter me dedicado a vencer todos os obstáculos na minha vida profissional, até mesmo assédio moral e sexual. Infelizmente, ainda vivemos em sociedades preconceituosas, nas quais as pessoas julgam pela aparência. Mas podemos mudar essa cultura. Hoje eu tenho duas alunas, em turmas diferentes e fico torcendo para elas ficarem na área. Dou muita força para elas. É importante ter mais mulheres participando desse mercado, para que ele possa evoluir mais. Todos ganham com esse equilíbrio.
Hoje, quando entro em sala de aula para ministrar cursos sobre Sistemas RAC não vejo somente pessoas, homens e mulheres, querendo aprender, eu vejo profissionais capazes de mudar o mundo, agregando nas suas vidas valores como: superação, determinação e conscientização da responsabilidade social e ambiental. Essa é a minha missão. Esse é o meu trabalho.